Essa noite eu sonhei com a Camila.
A Camila era minha amiga na época do colegial. Um barato de menina, linda e muito inteligente, falava em voz alto coisas desconexas e me passava as respostas das provas de matemática e química que, pasme, ela sabia de verdade!
Ela entrou na escola no mesmo ano que eu, bombou no colegial técnico de prótese e foi praquele colégio estadual. Uma pinta de fresca (como eu), tanto que demoramos um semestre pra começarmos a nos entender.
Todos os caras da nossa sala babavam por ela mas parece que ela nem se ligava. Estava sempre rindo pra todo mundo e, às vezes, saía de órbita e passava aulas inteiras olhando pro teto ou com a cabeça encostada na muretinha da sala de aula. Todo mundo queria ficar com ela e ela, com aquela pele clarinha e o sotaque de Barbacena, sonhava com o dia que o cara que ela gostava voltaria pra Pinda por causa dela. Ele nunca mais voltou, e o olhar dela ficava cada vez mais longe toda segunda-feira, após um fim-de-semana inteiro de espera. Foram tantos que perdi a conta. Com certeza, ela não.
Ela tinha um senso de humor incrível. Me ligava no meio da tarde pra me contar uma história engraçada que tinha lembrado. Tirava sarro de mim, da Cris e da Elô na cara dura, e adorava se zoar. Não gostava no excesso de pintas que tinha, vai vendo. Quando alguém pedia o telefone dela, ela às vezes dava e, quando voltava pra perto da gente, soltava um lesado "tá doido". Como era mais velha, era ela que comprava todas as bebidas nas festas que a gente ia.
Junto com ela eu descobri os poderes destrutivos do fogo paulista e dividia os mesmos caras nas baladinhas da vida. Eu achava bonito, ela também, fechou: o cara se sentia um rei.
Camila e eu no último dia de aula do terceiro colegial: a festa estava apenas começando
Mas a Camila era, antes de mais nada, minha amiga. Que me escutava quando os maiores problemas da minha vida era ver o peão de rodeios que eu amava (sim, eu já fiz isso) e quando eu queria pular o muro da escola pra voltar pra casa pra dormir. Foi ela a primeira a me procurar naquela semana maldita em que eu parei de ir à escola. Foi ela que gritou comigo dizendo que eu precisa parar com aquilo, de sofrer e só querer dormir.
Era ela que estava todos os dias, às 10 pras 7 da manhã, na porta da minha casa, pra me obrigar a ir pra escola junto com ela. Ela não fez nada sozinha, mas ela me ajudou a me levantar quando eu achei que a minha vida estava perdida. E sempre me dizia que "a gente ia superar", me dando a certeza de que ela estava ali, comigo, sempre que eu precisasse.
Quando eu me mudei pra São Paulo ela me ligava na quinta-feira pra saber se eu estaria em Pìnda no final de semana. Eu sempre estava e nada mudava entre a gente, todo sábado a gente saía, arranjava alguma coisa sem-noção pra fazer. Ela foi minha primeira amiga conhecida a se prejudicar com o novo Código Nacional de Trânsito: na primeira semana que estava valendo ela foi pega dirigindo moto sem habilitação e perdeu a carteira de motorista de carro por causa disso. Virou piada por uns seis meses, a coitada.
Mas aí chegou o carnaval de 2000 e a Camila conheceu o Márcio. Ele era lindo e ela surtou por causa dele. Quando se beijaram pela primeira vez ela quase desmaiou, de verdade. Começaram a namorar rápido e dois meses depois estavam noivos. Desde aquele dia, que eu passei na loja que ela trabalhava e ela me contou a novidade, ela começou a ficar distante.
O noivo dela era extremamente ciumento e não deixava ela sair sem ele. E ela, pro meu espanto, abaixou a cabeça. A Camila parou de sair, parou de ligar, praticamente apagou. Ficou na saudade de todo mundo. Todo mundo que se lembrava dela tinha um pouco de saudade na voz. A última vez eu a vi foi no baile de formatura da minha irmã, no final de 2002, em que ela pulou na minha frente, me abraçou e disse que sentia muita saudade. Disse que ia casar e que fazia questão que eu estivesse lá no dia. Quando ela me perguntou o que eu andava fazendo, despejei meu trabalho, meu affair no momento. Quando eu perguntei o que ela andava fazendo, ouvi um insólito "Nada. Me preparando pra casar". Sem estudar e sem trabalhar por escolha própria. Estranho, principalmente se tratando da Camila.
No meio do ano passado encontrei a Cris na farmácia e ela me contou que a Camila já estava casada e não convidou ninguém que fazia parte da turma do colégio. Fiquei chateada por não ter sido convidada, mas fiquei ainda mais chateada por ela: é ótimo encontrar um amor, ficar com ele e ter chances de isso ser pro resto da vida. Mas ela se anulou, esqueceu os sonhos que tinha pra parar de trabalhar, de estudar. Casar e continuar vivendo na casa da mãe.
A Camila, aquela minha amiga, ficou lá atrás, no século passado, onde eu nunca mais vou achar.
...
No sonho dessa noite ela estava dançando, a gente devia estar na Cyclone em Taubaté. Ela estava com uma barriga linda, aguardando a chegada da Amanda (o nome que ela sempre quis dar pra filha). Não tem como saber se é verdade, talvez seja. Mas é bom lembrar que no sonho ela tinha 17 anos, o sorriso era o mesmo e mesmo que eu tenha certeza que nossa amizade nunca mais voltaria a ser a mesma, é bom saber que ela existiu.